“(…) quando nos perguntamos por que meios um certo nível moral poder mantido numa sociedade humana ou animal, só descobrimos três deles: a repressão dos actos anti-sociais, o ensino moral e a própria prática do apoio mútuo. E visto que todos os três foram praticados, podemos julgá-los pelas suas obras.
Quanto à impotência da repressão, está suficientemente demonstrada pela desordem da sociedade actual e pela própria necessidade da revolução que desejamos ou que todos sentimos inevitável.
No domínio económico, a coerção conduziu-nos às galés da indústria; no domínio político, ao Estado, isto é , à destruição de todos os laços que outrora existiam entre cidadãos (os jacobinos de 1793 romperam inclusive os que tinham resistido ao Estado monárquico), para que a nação se torne uma massa incoerente de súbditos, submetidos sob todos os aspectos a uma autoridade central.
O regime de coerção não só criou os males do sistema económico, político e social actual, como também deu provas da impotência absoluta para elevar o nível moral das sociedades; ele nem mesmo soube mantê-lo ao nível que estas haviam atingido. Porque se uma fada benfazaja pudesse revelar aos olhos de todos os crimes que se cometem todos os dias, a todo instante numa sociedade civilizada, sob o abrigo do desconhecido, das altas protecções e da própria lei, a sociedade tremeria.
Nunca são atingidos os maiores crimes políticos como ode 2 de Dezembro ou da semana sangrenta, e, como dizia o poeta:”Ferem-se os pequenos infiéis para satisfação dos grandes”. Mais do que isso, Mesmo quando a autoridade se encarrega de moralizar a sociedade pelo “castigo dos criminosos”, apenas acumula novos crimes!
Praticada há séculos, a repressão deu tão mau resultado que estamos num impasse, do qual só poderemos sair levando o archote e o machado às instituições do nosso passado autoritário.
Longe de nós a ideia de desconhecer a importância do segundo factor, o ensino moral, sobretudo aquele que se transmite inconscientemente na sociedade e resulta do conjunto das ideias e apreciações expostas por cada um de nós sobre os factos e os acontecimentos da vida quotidiana. Mas essa força só pode influir na sociedade com uma única condição: a de não ser obstada por um outro conjunto de ensinos imorais relutantes da prática das instituições. Neste caso, a sua influência é nula ou mesmo nefasta.
Olhai a moral cristã: que outro ensino teria podido controlar mais os espíritos do que aquele que falou em nome de um Deus crucificado, e teria podido actuar com toda a sua força mística, toda a poesia do martírio, toda a grandeza do perdão aos carrascos? E, no entanto, a instituição foi mais forte do que essa religião: logo o cristianismo – revolta contra a Roma imperial – foi conquistado por essa mesma Roma: ele aceitou as máximas, os costumes e a linguagem. A Igreja cristão tornou-se direito Romano, e, como tal, foi na história, aliada ao Estado, o inimigo mais encarniçado das instituições semicomunistas, para as quais o cristianismo apelara em seus começos.
Podemos crer um momento que o ensino moral, patroneado pelas circulares de ministros da Instrução publica tivesse a força criadora que o cristianismo não teve? E o que pode fazer o ensino dos homens verdadeiramente sociais contra o ensino derivado de costumes anti-sociais?
Resta o terceiro elemento – a própria instituição actuando de maneira a fazer passar os actos sociais ao estado de hábito, instinto. Este – a história no-lo prova – nunca errou seu alvo, nunca procedeu como uma faca de dois gumes; e, quando enfraqueceu, foi só então que, o costume, procurando imobilizar-se, cristalizar-se tornando-se religião inatacável, absorvia o indivíduo, tirava-lhe toda a liberdade de acção, e forçava-o assim a revoltar-se contra o que impedia o progresso.
Efectivamente, tudo quanto no passado constitui um elemento de progresso ou um instrumento de aperfeiçoamento moral e intelectual da raça humana, foi devido à prática do apoio mútuo, aos costumes que reconheciam a igualdade dos homens e os levavam a aliar-se, a associar-se para produzirem e consumirem, a unir-se para se defenderem, a federar-se e a reconhecer como juízes, para resolver as suas querelas, somente os árbitros escolhidos no seu próprio seio.
Todas as vezes que estas instituições, emanadas do génio popular, quando tinha, por um momento, reconquistado a sua liberdade, todas as vezes que estas instituições tomavam na história novo desenvolvimento, todo o nível moral da sociedade, o seu bem-estar material, sua liberdade, seus progressos intelectuais e a afirmação da originalidade individual entravam numa fase ascendente. E, ao contrário, todas as vezes que, no curso da história, os homens, fosse me consequência de uma conquista estrangeira ou em razão do desenvolvimento dos preconceitos autoritários, tornavam-se cada vez mais divididos em governantes e governados, em exploradores e explorados, o nível moral baixava, o bem estar da maioria desaparecia para assegurar a riqueza a alguns, eo espírito do século logo definhava.
É o que a história nos ensina, e é dela que tiramos a nossa confiança nas instituições do comunismo livre, para reerguer o nível moral das sociedades, rebaixado pela prática da autoridade.
Hoje vivemos lado a lado sem nos conhecermos. Num dia de eleição encontramo-nos em meetings, ouvimos ali as profissões de fé mentirosas ou fantasiosas de um candidato, e voltamos para casa. O Estado tem a seu cargo todas as questões de interesse público; só ele tem por função velar a que não lesemos os interesses do próximo e, se for o caso, reparar o mal castigando-nos.
O nosso vizinho pode morrer de fome ou espancar os filhos – isso não é convosco; é assunto da polícia. Mal vos conheceis, nada vos une, tudo tende a vos alienar um ao outro e, não achando melhor, pedis ao Todo-Poderoso (outrora um deus, hoje o Estado) para fazer o possível para impedir que as paixões anti-sociais atinjam os seus últimos limites.
Isto muda forçosamente numa sociedade comunista- A organização do comunismo não pode ser confiada a corpos legislativos, que se chamem parlamentos, conselhos municipais ou conselhos comunais Ela deve ser a obra de todos, um produto do génio construtivo da grande massa; o comunismo não pode ser imposto; ele não viveria se o concurso constante, quotidiano de todos não o mantivesse. Sufocaria numa atmosfera de autoridade.
Consequentemente, ele não pode existir sem criar um contacto contínuo entre todos para os milhares e milhares de negócios comuns; não pode viver sem criara a vida local, independente nas menores unidades – a rua, o bairro, a comuna. Não corresponderia ao seu fim se não cobrisse a sociedade de uma rede de milhares de associações para satisfazer as mil necessidades de luxo, estudo, gozo, divertimentos, as quais não poderiam continuar a ser locais, mas necessariamente (tenderiam como já acontece nas sociedades de homens de ciência, as uniões de ciclistas, as sociedades de salvamento, etc) a tornarem-se internacionais.
E os costumes sociais que o comunismo, embora parcial ao começo, deve forçosamente engendrar na vida, seriam já uma força incomparavelmente mais poderosa, para manter e desenvolver o núcleo dos costumes sociáveis, do que todo o aparelho repressivo.
Eis, pois, a forma – a instituição sociável – à qual pedimos o desenvolvimento do espírito de bom acordo que a Igreja e o Estado se encarregaram de nos impor com os resultados lastimosos que conhecemos em demasia. E estas reflexões, notai-o, contêm a nossa resposta aos que afirmam que Comunismo e Anarquia não podem avançar juntos. Eles são, como vedes, c complemento necessário um do outro.>>
Kroptokin; “A Anarquia sua filosofia, seu ideal”