algumas considerações sobre a acampada do rossio

Escrito a convite do blog: http://eprotest.wordpress.com/

” Princípio este texto com uma declaração de intenções. A convite deste blog , proponho-me a refletir e testemunhar sobre algumas das coisas que têm sucedido no âmbito dos movimentos sociais, com lugar ao longo do último ano em Lisboa. O texto não tem qualquer base científica e é apenas um ponto de vista sobre alguns dos acontecimentos que experimentei ao cabo deste ano.

Definitivamente, 2010 em Portugal ficará marcado por dois acontecimentos. A queda do governo de José Sócrates e a terceira entrada do FMI em Portugal. Mas outro acontecimento com importância relevante tomou lugar e, apesar, de não ter tido um impacto concreto e palpável, tem a relevância por ser uma das maiores movimentações de massas desde o período do PREC, em 1974. Falo do dia 12 de Março, quando milhares de pessoas acorreram às ruas das cidades portuguesas, para fazer ouvir o seu protesto.
Este acontecimento é sintomático de um mal-estar, que apesar de parecer adormecido, está latente na nossa sociedade. Especialistas na discussão, os portugueses sempre tiveram muito a dizer sobre o estado do país, mas no último ano alguns sinais aparentam uma vontade de passar das palavras à acção. Como momento simbólico disso mesmo, vou focar-me na “Acampada do Rossio”. Tomou lugar nesta praça lisboeta durante algumas semanas de Maio e Junho, com assembleias populares que se organizaram diariamente até ao dia das novas eleições antecipadas para eleger um novo governo, com uma vigília permanente que durou até cerca de uma semana antes destas eleições, e algumas manifestações. A inspiração do que aconteceu noutras cidades, como Cairo, Reiquiavique ou Madrid, levou algumas centenas de pessoas a gravitar ou acampar no Rossio durante os dias que durou a acampada. Os objectivos não estavam bem definidos, dada a própria espontaneidade do acontecimento que se iniciou em frente à embaixada de Espanha, como um movimento de solidariedade com o que estava a acontecer na Praça do Sol e na Praça da Catalunha. Lembro-me da surpresa que tive ao saber do acontecimento e julgo que, pelas cabeças de quem ali acorreu, passava a mesma energia eletrizante, a mesma vontade de marcar uma diferença e de mostrar às forças regentes do mundo que não estamos numa posição de constante prostração. A mesma indignação com a forma como o financiamento da Troika, composta pelo B.C.E., U.E. e F.M.I., estava a ser solicitada sem que se esclarecesse as verdadeiras causas da situação económica do país, nem alternativas ao plano de austeridade consequente deste financiamento. A mesma noção de direito e ambição para tomar o nosso destino nas mãos. Viveram-se dias intensos com diversas discussões, dentro e fora das assembleias, na tentativa de desconstruir o quotidiano tantas vezes codificado e mitificado pelos meios de comunicação e a pela oligarquia regente.

Acabou por tornar-se fogo-fátuo. Condenados pela indiferença dos restantes lisboetas que se apressaram a caracterizar os “sitiados” do rossio, como um grupo de punks, freaks, um bando de escumalha que nada quer fazer de produtivo da vida e apenas quer afirmar um estatuto de marginalidade. Devo fazer a ressalva de que havia todo o tipo de pessoas ali. Salvo raras exceções, a mensagem foi largamente veiculada nos media, que pouco contribuiu para retratar de forma fiel o que ali se passava. A ignorância foi em parte a sua arma, exceptuando o momento em que, na véspera do dia das eleições, uma carga policial tentou reclamar a praça de volta ao seu quotidiano.

Se quisermos ser rigorosos, consideraríamos que “o Rossio” foi um fracasso dada a pouca capacidade que teve para criar algo de consequente dentro do grupo e para a restante comunidade. No entanto, acredito que foi uma experiência de grande mais-valia para aqueles que se comprometeram de forma mais veemente com a sua edificação. Considero que existe um défice de prática na auto-organização. Estamos demasiado habituados a fazer escolhas sobre coisas que já existem, num princípio quase binário de afirmação das nossas convicções sobre a nossa maneira de estar. Talvez tenha sido esse o grande exercício que colocámos ali em prática. Talvez esse, também, tenha sido o motivo que levou as pessoas que por ali iam passando ou vendo o fenómeno pelos jornais e televisão, a questionar peremptoriamente a validade do mesmo.

Fiz um apelo, numa das Assembleias Populares, para que as pessoas ali envolvidas compreendessem que este processo era uma aprendizagem de grande importância. Nas escolas não somos educados para o funcionamento do princípio democrático. Em grande parte este sistema funciona, apenas, como forma de legitimação dos Governantes. Se antes os Reis se diziam dignos representantes do seu soberano pela vontade divina, hoje, os políticos encontram essa legitimação por meio do voto. Apenas poderemos afirmar com verdadeira propriedade, a existência de um estado democrático (o princípio de cada cidadão um voto, uma opinião, uma individualidade livre) no momento em que a democracia for um processo participativo e ocupar os diferentes campos da sociedade. Das escolas, aos nossos bairros, às empresas e às nossas relações sociais. Quando destruirmos a lógica hierárquica que torna uns mais relevantes que outros. Em parte era isso que estávamos a desconstruir naquela Acampada e isso foi em grande medida o seu sucesso. A forma como, naturalmente, se criaram compromissos entre pessoas que não se conheciam anteriormente e construía um espírito de camaradagem, comprovando que existe uma vontade, que se expressa de forma cada vez mais clara, de construir um mundo mais justo e igualitário. Faltará um processo emancipatório efetivo para que esta realidade se torne mais clara, mas os próximos meses poderão desvendar-nos grandes surpresas. É, pelo menos, essa a minha expectativa. O progresso encontra-se em marcha.”

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