REFLEXÕES SOBRE A DÍVIDA SOBERANA

REFLEXÕES SOBRE A DÍVIDA SOBERANA

José Luís Félix

Tal como muitos outros membros do Grupo “Não pagamos a Vossa Dívida”, também eu considero que se deve recusar o seu pagamento.
Porém, não basta esta afirmação, é necessário fundamentá-la.
A versão “oficial” e generalizada com que nos iremos confrontar baseia-se nalgumas evidências e em tantas outras mistificações. A saber:
Este país não gera suficiente riqueza que permita manter um nível de consumo e gastos públicos claramente insuportáveis para a riqueza gerada e obtida pela economia portuguesa. Como consequência deste desfasamento entre a riqueza nacional e a despesa efectuada, sobretudo nos últimos anos, o país foi-se endividando com empréstimos contraídos no estrangeiro, única forma que os governos podiam utilizar para permitir os excessos consumistas.
Tudo isto é repetido até à exaustão pelos políticos de serviço, os economistas com as meninges atafulhadas com teorias requentadas e interesses de classe, os mercenários da caneta que se arrogam de jornalistas, os teóricos de uma banda só, os comentadores propagandistas, os politólogos e até uns quantos classificáveis como palitólogos. Isto é, todos os apologistas da opressão e exploração, se encontram unidos em torno da manutenção de uma organização social, injusta e caduca.
Todos eles criaram uma frente unida contra o povo, baseada numa mesma conclusão e com um ambicionado objectivo. Ou seja, o país está carregado de dívidas e a população tem de se sacrificar para as pagarmos. Por isso somos diariamente acossados com essa propaganda.
Tentemos então analisar a realidade.
A SITUAÇÃO PORTUGUESA
Em primeiro lugar é preciso salientar que, devido a causas estruturais e deficiências do aparelho produtivo, este país sempre se tem arrastado com dificuldades nas suas relações com o exterior. No século XIX por três vezes entrou em bancarrota. E , há cerca de 30 anos, por duas vezes foi necessário estabelecer um acordo com o FMI, para receber um empréstimo em divisas, com a contrapartida habitual de diversos cortes governamentais.
Porém a situação de hoje é substancialmente mais complicada do que há 30 anos atrás. Hoje o país não tem moeda própria, nem pode implementar as clássicas políticas económicas de então, agora controladas pela União Europeia, que emite a moeda, e impõe as políticas monetárias  e orçamental. Por outro lado a estrutura produtiva portuguesa e a balança comercial encontram-se substancialmente agravadas. Assim, um orçamento expansionista está impedido pela imposição do tecto do deficit de 3% do PIB, assim como a impossibilidade de emissão de moeda. Quanto à debilidade produtiva, basta dizer que quando da crise anterior a agricultura portuguesa produzia mais de 60% dos alimentos consumidos, enquanto hoje está reduzida a 30%. Enquanto isso, a pesca reduziu-se praticamente ao pescado de pequena dimensão, a indústria definhou e os serviços de elevado valor acrescentado são em reduzido número. E acentuou-se a hegemonia do lucro
através da renda, o que transformou esta nossa antiga pátria de negreiros num país de rentistas.
O EURO E A CRISE DO CAPITAL
Acresce que estamos vivendo uma grave crise do capitalismo à escala global. Hoje a desregulamentação com que os diferentes governos procuram acorrer em socorro das empresas internacionalizadas, conduziu o mundo para uma selva concorrencial, na qual as grandes corporações e o capital financeiro impõem sem dificuldades os seus interesses aos vários estados. Pode-se afirmar que a antiga expressão “O capital não tem pátria”, já não é suficiente para caracterizar a actualidade, é preciso acrescentar “A pátria não tem capital”.
Para compreendermos em que radica a actual crise portuguesa, temos igualmente de recuar à génese da moeda única. O euro é o resultado de uma política económica que tem como objectivo principal a defesa das empresas dominantes da União Europeia e dos países de economia mais sólida, em primeiro lugar da Alemanha. O euro é o resultado de um cabaz de moedas de todos os participantes, cabaz esse ponderado pelo peso de cada economia. Por exemplo, a economia portuguesa vale cerca de 2% do conjunto da União, enquanto a da Alemanha vale mais de 30%. No entanto houve países que beneficiaram com o euro, porque viram a sua moeda subvalorizada relativamente, o que lhes facilitou as exportações. Caso da Alemanha, enquanto com outros aconteceu o contrário, passaram a ter uma moeda muito mais forte. Como sucede com Portugal.
Assim tornou-se mais fácil aos exportadores alemães colocarem os seus produtos no estrangeiro europeu, para onde actualmente se dirigem dois terços das suas exportações.
PORTUGAL E O EURO
Quanto a Portugal, viu aliada a uma moeda forte, uma redução enorme das taxas de juro para empréstimos. Tudo isto fomentou um aumento do consumo, das famílias, das empresas e do estado. Consumo esse grandemente incrementado pela política comercial da banca, recheada de apelos ao crédito extremamente facilitado. Os bancos portugueses encontraram uma maneira facílima de ganhar dinheiro, dirigiam-se aos seus congéneres estrangeiros pediam-no a baixos juros, emprestando-o depois em Portugal, beneficiando de um diferencial considerável Assim, choveram as imobiliárias e os correspondentes empreendimentos, enquanto o estado, por seu turno, se concentrava em obras públicas, muitas vezes sem nexo, em auto-estradas que iriam facilitar as importações, em grande parte da indústria alemã e da agricultura francesa. O resultado de tudo isto sobre a estrutura produtiva portuguesa está à vista, com o abandono de diversas indústrias e projectos de
investimento, às vezes de fileiras inteiras de produção, incapazes de resistir à concorrência internacional, agora em novos e sofisticados moldes.
Estes caso repetiu-se em vários outros países europeus mais débeis economicamente, enredados num consumo induzido do exterior e abandonando mais ou menos rapidamente a produção doméstica.
CONSEQUÊNCIAS DE UM ABANDONO DESCUIDADO
Na verdade esta é uma situação já bem estudada noutras ocasiões, como foi a que resultou da unificação de Itália. O sul que até então, possuía tantas capacidades como o norte do país, definhou com a unificação, não conseguiu resistir à livre concorrência nortenha e não mais recuperou. Não atribuo este percurso à unificação, que pode ser positiva, mas sim ao facto de nunca tomarem as necessárias medidas para o período de transição. E na economia impera a lei do mais forte. Apesar dos inúmeros programas de apoio e de financiamentos públicos, o Sul da Itália jamais recuperou do choque, sem protecção suficiente, perante uma região mais poderosa e preparada. O mesmo se passou com Portugal e outros países da União. Saliente-se que também no projecto europeu existem vários programas de desenvolvimento nacional e regional, mas quase sempre de reduzido efeito, porque esses países estão condicionados pela imposta divisão
internacional do trabalho e especializam-se em determinados sectores onde terão vantagens comparativas e abandonam os restantes sectores ao estrangeiro. Além disso os fluxos financeiros e outros dirigem-se maioritariamente para os pólos mais desenvolvidos na óptica capitalista. Em Portugal o sector considerado prioritário nessa divisão internacional de trabalho foi o turismo, actividade extremamente aleatória e comandada a partir de outros países. De referir ainda que muitos dos milhões de euros provenientes de diversos programas comunitários foram desperdiçados com os boys do costume, tal como com obras inúteis e sumptuárias. O caso da formação profissional é paradigmático. Acresce que se criou uma moeda única, mas cada um dos países em que ela impera tem o seu próprio orçamento, a sua própria fiscalidade e o BCE só pode emprestar dinheiro aos bancos, onde os governo se vão depois  financiar com juros muito mais elevados. Tudo
isto para facilitar o a concentração capitalista e a obtenção de lucros pelas instituições mais poderosas, com as consequências conhecidas.
De tudo o que foi mencionado atrás é fácil concluir que a origem da actual dívida pública externa teve origem na própria essência do sistema capitalista, voraz no seu objectivo fundamental, ou seja, na maximização do lucro.
PROBLEMAS ESTRUTURAIS DO CAPITAL
É indispensável ainda acrescentar vários aspectos relacionados com os problemas estruturais do sistema capitalista internacional, que condicionam a realidade económica portuguesa, totalmente aberta e dependente do exterior. Quando há mais de dois anos a crise do capital se tornou violentamente evidente, com a falência de vários bancos e a pré-falência de muitos outros, tudo valeu para acorrer em seu socorro. A especulação que as instituições financeiras norte-americanas, e de todo o mundo, faziam, as trafulhices com créditos sem sustentação, as operações de futuros irrealistas, os créditos imobiliários assentes no vácuo e outras fantasiosas operações financeiras, baseadas em operações em pirâmide, nas quais os juros são pagos com o dinheiro de novos intervenientes, tinha necessariamente de estoirar. O que aconteceu e deixou muita gente na ruína e os bancos em pré-falência. Face a isso as marionetes da politica, como o Durão
Barroso e o Jean-Claude Trichet, proclamaram que ia ser implementado um rigoroso controlo dessas operações. Palavras ocas e demagógicas, próprias dos grandes especialistas do embuste que são os políticos profissionais.
Hoje, não se fala mais de qualquer controlo e impõem-nos duramente as mesmas medidas que conduziram ao descalabro. Tudo isto com uma finalidade, socorrer os bancos, recapitalizá-los, proporcionar-lhes bons lucros, agora muito mais difíceis de obter através desses métodos passados. Transferir, ao fim e cabo, parte do rendimento dos trabalhadores para o sector bancário e financeiro. E esta não será uma medida passageira, a ambição dessa malta do poder é agravar as condições de vida do povo para o futuro. Pretendem deste modo, a coberto do combate à crise, por eles criada, que não só a paguemos mas também conseguirem retirar-nos as conquistas laborais que obtivemos através de duras lutas de muitas décadas.
O FINANCIAMENTO DOS GASTOS DO PAÍS
O problema do financiamento dos gastos de um país, está directamente ligado à sua capacidade de produção e à riqueza gerada por essa economia. Se um país não consegue obter por si próprio os financiamentos necessários ao seu nível de gastos terá de recorrer aos empréstimos, internos ou externos, estatais e privados. Por exemplo o Japão, tem um deficit com os seus gastos mais de 6 vezes superior ao português, mas a poupança interna, habilmente canalizada para o investimento através de canais especializados, permite-lhe cobrir amplamente esse diferencial. No caso dos EUA, juntam a um gigantesco deficit orçamental um também gigantesco deficit da balança comercial, que no seu conjunto formam um autêntico buraco negro da economia mundial, que tudo absorve. É deste modo que o império norte-americano, cobre os seus deficits colossais, através de empréstimos externos, através da colocação dos seus títulos do tesouro, comprados pelos
países excedentários em divisas, particularmente a China, que possui as maiores reservas de divisas do planeta. Pode daqui concluir-se, aliás, que o consumo desvairado de grande parte da população norte-americana é financiado através do labor centenas milhões de trabalhadores chineses que, mal pagos, permitiram ao seu país tornar-se o maior exportador mundial e arrecadar as respectivas divisas.
Já a situação de Portugal, como a da Grécia e outros, é muito diferente. Além disso, a par dos condicionamentos provocados pela debilidade estrutural da sua economia, bem como pela sua fragilidade face aos parceiros europeus mais poderosos, pratica uma fiscalidade característica do compadrio por cá reinante. A arrecadação de impostos encontra-se invertida, quem menos tem é quem mais paga. As maiores empresas, os bancos e as multinacionais, escapam com facilidade ao pagamento de imposto relativo aos seus lucros, mercê de uma legislação favorável, quando não incentivadora da fraude fiscal, bem como de uma gestão e contabilidade criativas. Por outro lado, como o imposto sobre as empresas, o IRC, é calculado em função do lucro declarado, as empresas falseiam vulgarmente os resultados do seu exercício. Quem paga o imposto directo são os assalariados, que contribuem com o fundamental da receita destinada a suportar os gastos estatais, sem
possibilidade de fuga, uma vez que o imposto é recolhido na fonte. Estes assalariados, face à fúria inquisitória e fiscal que se abate sobre os mais fracos, passaram agora também a ser acompanhados por grande parte dos aposentados, os trabalhadores já retirados.
QUANDO A RECEITA FISCAL NÃO CHEGA
Naturalmente que esta recolha de impostos não é suficiente para sustentar os gastos do estado, que assim se obriga a contrair empréstimos externos. Note-se que a parte maior desses empréstimos externos, cerca de dois terços, foi contraída por entidades privadas, sobretudo bancos e grandes empresas, várias delas pertença do estado, que as abandonou à sua sorte, deixando de as financiar na qualidade de estado patrão, forçando-as assim a recorrer ao crédito no exterior.
Face a este panorama e, dada a impossibilidade do recurso ao aumento dos gastos públicos, ou desvalorização da moeda, que a União e a sua moeda única proíbem, que medidas restam para inverter a actual situação?
Muito poucas, todas elas baseadas no aumento da exploração dos trabalhadores e na redução do  nível de vida da população. Medidas que se baseiam na esperança de, uma vez reduzidos os custos das empresas, estas possam desenvolver um aumento pletórico das exportações. Esperança esta sem fundamentos reais, como se verá a seguir.
O FRÁGIL INDICADOR DO PIB E A ILUSÃO EXPORTADORA
O tão propalado Produto Interno Bruto, a riqueza produzido por um país num ano, é assim constituído: PIB=C+I+G+Ex+Imp, em que C é o consumo privado ou das famílias, I o investimento, G os gastos públicos ou do Estado, Ex são as exportações e Imp as importações, que se subtraem às Exportações para nos dar a Balança Comercial. Com as medidas acordadas com o FMI/União Europeia, vamos assistir a um considerável aumento da recessão em que já nos encontramos, isto é a uma na redução continuada do PIB. E isto é absolutamente certo, uma vez que se reduz o consumo privado, os gastos públicas vão diminuir ainda mais e o Investimento, já anémico, continuará a reduzir-se. Restam assim as exportações.
Mas o seu aumento, a uma escala que compense a redução nos outros agregados, é uma perfeita ilusão, ou mesmo mistificação, isto devido a diversas razões. Exportar para onde? Quem compra produtos de média incorporação tecnológica? Como bater os dois tipos de produtos que dominam o mercado exportador mundial, os de elevado valor acrescentado tecnológico e aqueles de baixos custos de produção, sobretudo de mão de obra barata? Como integrar as redes comerciais de grande dimensão que dominam o comércio internacional? Como ultrapassar as centenas de países que perseguem o mesmo objectivo e querem aumentar as suas exportações? Como suprir a elevada incorporação importada nos produtos por cá produzidos? Face a isto é fácil prever o resultado que aguarda esta ofensiva exportadora, após um aumento do volume e valor na fase inicial, irão seguir-se aumentos ligeiros, muito distantes de compensarem a forte redução dos outros componentes
no somatório que forma o PIB.
Como se pode constatar este PIB, é um indicador muito vago e que não nos fornece qualquer indicação sobre a composição e comportamento dos seus componentes. No caso do consumo privado, por exemplo, nada nos diz sobre a sua estrutura. Os portugueses aumentaram o consumo em 10% no ano transacto, mas não nos revelam se foi em medicamentos, aguardente, viagens ou educação. E o mesmo se passa em todos os agregados. Nesta abstracção generalizada, tanto faz que o investimento cresça na produção de material de guerra, como na construção de unidades de reciclagem de detritos ou na produção de cassetetes. Para o somatório do PIB é indiferente que cresçam os gastos públicos em educação ou na guerra.
E, naturalmente que semelhante indicador ignora a distribuição da riqueza do país. Podem 5.000 milionários apoderar-se de 50% do PIB anual e 10 milhões ficarem com os 50% restantes, que a propaganda dos meios de desinformação de massas, fazendo coro com os especialistas do império do lucro, apenas nos fala na evolução do PIB, jamais aludindo à forma como esse produto é distribuído pela população. E, no entanto, no caso português, desde o início dos anos 80, que se vem assistindo a uma constante inversão da divisão da riqueza entre os dois principais grupos sociais, os assalariados e os capitalistas. De tal forma que essa distribuição é actualmente semelhante à do período da ditadura com mais de metade da riqueza produzida a encaminhar-se para os cofres do capital.
A CRISE QUE VEIO PARA DURAR
E foi envolvidos nesta situação, com os trabalhadores portugueses desde há décadas em posições defensivas, procurando resistir nas posições conquistadas há décadas sem laivos de ataques ao poder do capital, nem inovações nas suas lutas, face a uma crise estrutural do capitalismo, que os políticos de serviço se puseram de joelhos para defender a sobrevivência do sistema.
Convém aqui referir que já lá vão mais de duas décadas que o capitalismo entrou numa crise larvar, por não obter, através da produção, os lucros que ambiciona, na esmagadora maioria dos sectores da economia. A introdução de cada vez mais meios automáticos que substituem o labor humano e a redução da consequente exploração do trabalho, bem como a desenfreada concorrência internacional muito facilitada pelos actuais sistemas de produção, onde o saber se encontra incorporado em sistemas abundantemente divulgados, constituem as componentes de maior influência em tal situação.
Perante esta queda da taxa de lucro nas actividades de produção tradicional, o sistema foi-se adaptando e respondeu com duas saídas. Por um lado através da deslocalização de milhares de unidades de produção dos centros europeus e norte-americanos para regiões de muito mais baixos custos relativos, não só no trabalho mas também na fiscalidade no ambiente e na energia. Além disso o capital beneficiou da cumplicidade dos diferentes estados, cujos governos se comportam como administradores de empresas num matrimónio incestuoso e descarado com os interesses do capital. Todos os governos procederam a múltiplas desregulamentações de leis e procedimentos que constituíam entrave ao livre domínio do mundo capitalista, permitindo aos mentores e beneficiários do sistema lançarem-se na mais pura especulação financeira. E foi essa especulação que, durante vários, anos, lhes proporcionou os lucros ambicionados, endireitando as contas das
companhias e muitas vezes dos governos.
Assim, a maioria das empresas para enveredou por esse caminho especulativo e usurário, mesmo as grandes companhias de tradição industrial como a General Electric, (GE) e a General Motors, (GM), as maiores nos seus sectores, respectivamente da electricidade/electrónica e do automóvel. A GE tem uma até um departamento dedicado a estas actividades especulativas, é a GE Money, que constitui a actividade mais lucrativa desta gigantesca corporação. A par disto, também a indústria armamentista desempenha um papel cada vez mais importante, nas áreas da investigação e  na obtenção de lucrativas encomendas estatais, tendo um papel decisivo nos lucros obtidos por algumas empresas. Como a Boeing e a Airbus, por exemplo. Mas, entre todas estas diferentes actividades foi a especulação que desempenhou o papel chave, até que, há cerca de dois anos, esta acção de usura desenfreada rebentou, como é de norma em qualquer processo em pirâmide.
A REACÇÃO DO CAPITAL FACE AO DESCALABRO
Apavorados os senhores do mando, berraram de imediato as promessas mais inimagináveis, com a ambição de saírem do pântano que a falência de algumas instituições financeiras internacionais e a pré-falência de muitas outras. Da suspensão das offshores ao controle rigoroso das transacções financeiras, tudo valia para dar alguma tranquilidade àquilo que na gíria neo-liberal eles apelidam de “mercados”, essa conveniente abstracção que foge dos conflitos de interesses e da luta de classes, como, garantem os crédulos, o diabo foge da cruz. Porém, como seria de esperar, tudo isso não passou de mais uma encenação dos grandes peritos do embuste, os “homens de estado”, como eles gostam de se designar. De gente como o Durão Barroso, o encenador da “Cimeira dos Açores” e dos seu cortejo de mistificações sobre ”as armas de destruição maciça” e do socialista Jean-Claude Trichet, que delapidou e levou à falência o banco que
administrava, o Credit Franco-Lyonais, com os empréstimos sem garantias seguras concedidos aos amigalhaços. Desta gente nada de bom seria de esperar.
Apenas uma das medidas apregoadas foi levada à prática. O aumento desmesurado do deficit de muitos países europeus, libertados do garrote dos 3% para acorrerem em socorro da banca. Em má hora o fizeram, porque ao débil crescimento económico, nalguns casos chegando mesmo à recessão, veio juntar-se o endividamento dos diversos estados, agora também eles em pré-falência, ou quase, para evitarem a derrocada dos bancos.
Claro que por detrás desta decisão se encontra uma opção estratégica, porque o capitalismo não pode existir sem um sistema bancário em funcionamento. Mas também não pode funcionar sem estado, e, na actual situação, à bancarrota de alguns estados pode juntar-se o total descrédito e o desmoronamento de outros, num processo de dominó que apavora os senhores do mando e do dinheiro.
O ESVAZIAR DOS COFRES DOS ESTADOS
De referir também que, na actual situação, o estado assiste impotente ao esvaziar dos seus cofres, por duas ordens de razões. A redução da actividade económica e o número cada vez menor de empresas apresentando bons rácios de solvabilidade. Assim a defesa da estatização ou nacionalizações, receita tradicional dos partidos de esquerda, não encontra possibilidades de sustentação por falta de recursos financeiros. Porque, convém lembrar, os recursos financeiros do estado provém dos impostos, imediatos ou diferidos no tempo, quando se pagam nos anos vindouros os empréstimos de hoje. Com as receitas a escassear, o estado não consegue satisfazer os seus compromissos, concentrando-se sobretudo nos várias modalidades de repressão e propaganda e abandonando as de carácter social à caridade(zinha), beata ou das ONG’s.. De sublinhar também que o eixo fundamental da sociedade capitalista, aquilo que é o seu sustentáculo, é o trabalho
assalariado. Transformar as gentes em assalariados, obrigá-las a vender a sua força de trabalho ao capitalista, que o força a trabalhar mais do que aquilo que seria necessário ao que recebe, retirando ao trabalhador esse excedente ou mais valia, é a principal preocupação do estado. O trabalho assalariado constitui a pedra angular de toda a engrenagem em que assenta esta sociedade da mercadoria generalizada, na qual tudo se compra e tudo se vende,
Face a este panorama, os senhores do mando e do dinheiro, eles próprios, simples peças da engrenagem abstracta da mega-máquina, que ciberneticamente faz movimentar a sociedade do dinheiro, apenas gerador de mais dinheiro e desligado de toda a realidade, seguem o que se lhes apresenta como o único caminho possível. Esmagar as populações, para lhes arrancar parte do seu salário, directo ou indirecto, e encaminhá-lo para a subsistência do capital.
Para atingir este objectivo todos os meios são válidos. Repressão, chantagem, desemprego, patrioteirismo ou a “concorrência das novas potências emergentes”, tudo vale e é propagandeado a todo o instante pelos meios de desinformação de massas.
OS “PAÍSES EMERGENTES” COMO MAU EXEMPLO
Desta boçal propaganda só merecerá a pena fazer uma referência às “novas potências emergentes”, pomposa designação que os propagandistas encontraram para o Brasil, Rússia, Índia e China, os BRIC, a que muitas já vão juntando a África do Sul.  Apesar do surto industrial desses países e da afirmação de uma burguesia e pequena burguesia consumidoras locais, é bom que se tenha noção da sua realidade. Nesses países, mesmo com uma relativa melhoria da vida das classes pobres, que constituem a grande maioria da população, a pobreza é generalizada, as classes possuidoras nadam na riqueza, grande parte da indústria é propriedade de multinacionais estrangeiras, a tecnologia moderna é principalmente importada e as assimetrias sociais e de toda ordem são gigantescas, enquanto o equipamento colectivo é extremamente reduzido e os apoios sociais confrangedores. Além disso, os conflitos de interesses e de classe, devido às assimetrias
sociais, têm vindo crescentemente ao de cima, apesar da repressão, como nas zonas mais industrializadas, de algumas regiões da China. A par da repressão e ataque à liberdade, os senhores do poder locais, utilizam abundantemente um histérico apelo ao patriotismo, como nivelador de conflitos. No meio de tudo isto os propagandistas “ocidentais”, ou seja os apaniguados do capitalismo, pretendem converter-nos ao seu credo do trabalho empenhado e mal pago, dando essas nações como exemplo, de trabalho intensivo e escassamente remunerado. Isto numa altura em que a utilização do trabalho humano escasseia nos países de capitalismo maduro, onde é cada vez mais substituído por máquinas. O que essa corja não refere é que a grande maioria desses trabalhadores dos tais “emergentes” e da alcunhada classe média que por lá vivem, tem um nível de vida sem qualquer comparação com o europeu, enquanto os ricos locais acumulam fortunas obscenas.
Ao ponto de uma família, da tal classe média do Rio de Janeiro, ter condições de vida semelhantes a uma sua homóloga que viva num bairro social de um país mal colocado no ranking europeu, como Portugal.
Não faz parte dos mirabolantes planos de desenvolvimento dos senhores do mundo e das suas agências, a melhoria substancial do nível de vida dos povos dos países mais pobres, que vêm as suas condições de existência agravadas, como demonstram todos os indicadores de pobreza. Pelo contrário, apontam-nos as condições de vida e de trabalho nos países ditos emergentes como um exemplo que teremos de seguir. Em torno desse objectivo é escamoteada a principal dinâmica que estrutura tais nações, uma economia dual, na qual a par de regiões de capitalismo desenvolvido e trabalhadores altamente qualificadas, existem muitas outras subsidiárias daquelas, subdesenvolvidas e fornecedoras de inputs baratos  e de um manancial de mão-de-obra abundante e  mal paga, de que os pólos de capitalismo modernizado beneficiam. É este o “modelo de desenvolvimento” que essa canalha do poder político e económico pretende impor aos povos do mundo, manter uns
quantos enclaves de capitalismo altamente desenvolvido a par de regiões muito maiores, fornecedoras àqueles de inputs e mão-de-obra baratas.
Mas a crueldade dos mentores desta organização social, está a par do embuste em que são peritos. Por isso mesmo lançam no desamparo os trabalhadores, para que façam companhia aos campos, fábricas e casas, submetidos a um pousio forçado, porque não lhes proporcionam o lucro desejado. Milhões de trabalhadores são lançados no desemprego e na precariedade, abandonados a um quotidiano de miséria, porque, tal como os campos e as fábricas, não proporcionam o lucro ambicionado.
Enquanto tentam empobrecer os trabalhadores para lhes proporcionarem maiores lucros, os “estadistas” e os “lordes do capital”, remetem a sua atenção para os cerca de 500 milhões de consumidores de elevado poder de compra que, espalhados por todo o mundo, incluindo os tais países emergentes, lhes podem proporcionar uma saída para a hemorragia mercantil que os actuais sistemas de produção de massas permitem. Não é por falta de necessidades básicas insatisfeitas que as fábricas e empresas encerram, mas por falta de dinheiro, de poder de compra dos trabalhadores e das camadas populares. Por isso mesmo esses 500 milhões de pessoas de fartos de recursos “têm” de comprar o que precisam e o supérfluo, manipulados pela ambição do status e as necessidades induzidas, que os conduzem a um consumismo desenfreado e patológico, numa espiral destruidora do ambiente.
Essa sede de lucro, inerente ao sistema da mercadoria generalizada, atinge níveis tais que, vários dos seus principais mentores e beneficiários, lançam, sem qualquer mínimo de vergonha, a miséria sobre diversos países para daí recolherem benefícios.
COMO OS BANCOS E ASSOCIADOS ARRASARAM A GRÉCIA
Tal foi o caso da Grécia, esmagada com a especulação sobre as garantias necessárias aos empréstimos contraídos pelo governo, designadas pela funesta sigla CDS, as garantias para pagamento dos créditos obtidos no caso de incumprimento.
Não satisfeitos em lançarem o caos nas finanças públicas dos vários países, os “mercados internacionais”, que não são mais que os mais variados especuladores, acobertados pelos maiores bancos do mundo, decidiram também afundar a economia de diversos países para obterem enormes lucros, através da compra na baixa dos CDS´s e a sua venda na alta, forçando tais flutuações no mercado de títulos de vários países através de compras e vendas maciças dessas garantias, ou CDS´s. Foi o que fizeram os fulanos de empresas de corretagem como a Moness, Hardt & Cº. e o financeiro Georges Soros, apoiados e financiados por bancos de negócios, como o Goldman Sachs, o JP Morgan e o Deutshe Bank. Através desses processos arrasaram a economia grega, o que lhes proporcionou enormes lucros, atacaram e continuam a atacar a dívida portuguesa e lançam-se sobre as economias espanhola, italiana e belga. O seu provável fim último é fazer baixar a
cotação do euro, comprá-lo na baixa, fazê-lo depois subir face ao dólar e vendê-lo na alta. Estas operações proporcionam-lhes lucros fabulosos, enquanto lançam a miséria sobre as populações dos países atacados.
Face a tudo o que acabo de expor, à crueldade, arcaísmo e incapacidade de reestruturação do sistema, inflamada pelos alicerces opressivos e exploradores que lhe são inerentes, hoje em febril crescimento, formulo as seguintes acusações a esta organização social:
ACUSAÇÃO AO CAPITALISMO
1 – ACUSO o sistema capitalista, e os seus mentores e beneficiários, de terem provocado uma crise financeira mundial, por via dos ardis utilizados e falcatruas cometidas, com o fim de obterem lucros sem olhar a meios.

2 – ACUSO o sistema capitalista, os seus mentores e beneficiários, de procurarem retirar benefícios com a actual crise por eles provocada.

3 – ACUSO este sistema de fazer recair sobre as populações o ónus das trafulhices que os seus mentores engendram.

4 – ACUSO o sistema de provocar a destruição dos benefícios sociais e laborais, obtidos através do combate de milhões de trabalhadores durante mais de dois séculos.

5 – ACUSO o sistema de criar uma moeda única europeia para benefício das principais instituições capitalistas do continente, sem considerar as suas implicações sociais, remetendo para uma situação marginal e dependente as pessoas, sobretudo nos países mais frágeis.

6 – ACUSO o capitalismo de tentar fazer um nivelamento “por baixo”, procurando baixar o nível de vida e os apoios sociais na Europa para uma situação semelhante à de países com diferente percurso e desenvolvimento histórico. Negando a possibilidade de contribuir para um desenvolvimento “por cima”, que iguale as condições de vida das populações desses países às dos seus homólogos europeus e norte-americanos.

7 – ACUSO os hierarcas da União Europeia de constituírem de facto o conselho de administração do capitalismo internacional.

8 – ACUSO os governantes portugueses dos sucessivos governos, de se preocuparem em primeiro lugar em gerir as expectativas populares, enquanto desenvolvem todos os esforços para beneficiar o capitalismo, sem preocupações com as consequências sociais e a miséria que provocam.

9 – ACUSO todos os profissionais da política portuguesa de má gestão nos negócios do estado, no caso dos que passam pelo governo, e de incapacidade de fiscalização, no caso daqueles da oposição.

10 – ACUSO os políticos portugueses por terem firmado um acordo de empréstimo financeiro com a União Europeia, BCE e FMI, altamente gravosos para a população portuguesa, que, em virtude disso, será lançada num rápido empobrecimento.

11 – ACUSO os responsáveis políticos portugueses e outros especialistas do embuste, por terem firmado um acordo para um empréstimo internacional que deixará na agonia a maioria da população, devido a contrato impossível de ser cumprido, com condições que impõem a entrega para pagamento de juros de 30.000 dos 78.000 milhões de euros do empréstimo e ainda com mais de 20.000 milhões destinados a recapitalizar a banca portuguesa.

12 – ACUSO essas mesmas personagens de, com semelhante acordo, lançarem o país na miséria e numa situação de recessão agravada que será suportada pela população.

13 – ACUSO os políticos de turno por utilizarem o medo e a chantagem mais ignóbil para obterem os votos e neutralização da população mais incauta.

Face a estas comprovadas acusações, entendo que nos devemos bater pelo não pagamento desta dívida, contraída em nosso nome e contra nós.

Entendo também que se deve lançar uma vasta campanha de diálogo e esclarecimento da população sobre esta escamoteada realidade, incluindo uma consulta popular sobre a questão da dívida e o lançamento de uma auditoria credível, independente e pública, que esclareça a verdade dos factos e contribua para a responsabilizar os seus mentores. E que, enquanto durar a realização dessa auditoria, o pagamento da dívida contraída fique suspenso.

Perante semelhante cenário confrontam-se três perspectivas, a saber:

A – Os governos de direita são corruptos, não cumprem o seu papel de defesa da sociedade portuguesa e devem, consequentemente, ceder o lugar a um partido mais apto a desempenhar o papel da defesa da sociedade e dos interesses da nação face às conveniências das maiores potências. Este ponto de vista é partilhado pelos partidos políticos de esquerda que contam apoderar-se de parte do poder a fim de reforçarem o papel do estado como expressão do interesse geral.

B – Esta perspectiva  consiste em ver no estado um obstáculo à liberdade de empresa. Para eles o estado providência não constituiu mais do que um período do desenvolvimento capitalista, agora constitui um travão à sua expansão. Trata-se de ligar a sorte da sociedade portuguesa ao capital e atingir a total submissão ao objectivo da mercadorização que impera neste tipo de sociedade. Este é um processo que está em curso com o actual governo.

Em geral estes dois pontos de vista, confundem-se muitas vezes no objectivo comum de fazerem crer às “massas” que o seu interesse particular é o mesmo que o interesse “nacional”.

C –  Esta é a menos divulgada, mas talvez a perspectiva com mais futuro. Trata-se da erradicação do próprio poder político, do fim do exercício do poder sobre as populações, do domínio e da opressão sob qualquer forma. É uma via social fundada na regra em que a reciprocidade retoma os seus direitos, fundada no terreno da luta social, reforçando as assembleias e as organizações de resistência ao mundo capitalista. Trata-se da construção de uma autonomia social perante os grandes poderes financeiros e económicos, uma forma de economia que se vai inventando e construindo a partir dos povos. Em que as transacções meramente mercantis, fundadas no lucro, vão sendo postas em causa e abolidas. Sem privilégios, nem domínios, formando zonas de resistência.

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