
Ofuscados pela ascensão dos smartphones, os telemóveis de teclas são uma alternativa que está a ser redescoberta – e até já representam uma oportunidade de negócio. O que se ganha quando se opta por um ‘dumbphone’?
Conhecido pela sua impressionante resistência a quedas, uma bateria que durava uma semana e, claro, a versão mais viciante do jogo “Snake”, o Nokia 3310 é um dos mais lendários telemóveis de teclas e ficou na memória de quem utilizou o primeiro modelo, lançado no final do século XX. A prova de que falar nele é “coisa do século passado” é olhar para a evolução destes dispositivos e perceber que hoje eles perderam as teclas, mas ganharam cor nos ecrãs, câmaras fotográficas de alta resolução e acesso a internet e redes sociais. E são precisamente estas duas últimas funções que estão na origem de um novo movimento: o regresso aos dumbphones. Quebrar a invasão de notificações e permitir-se “desligar” estão entre as preferências de quem hoje prefere teclar ao invés de fazer scroll.
Aos 42 anos, Tiago Sousa é um resistente. Já estava por cá quando começaram a chegar às mãos do consumidor comum os primeiros telemóveis, por volta dos anos 90, e acompanhou toda a evolução tecnológica até à atualidade, mas nunca cedeu. Sempre usou modelos com teclas e essa escolha tornou-se numa filosofia de vida. “É libertador. Nós pensamos que temos liberdade porque temos tudo na palma da mão, mas na verdade estamos a ser escravos disso mesmo. Libertador é podermos deixar o smartphone em casa ou desligá-lo, ir para a rua e estar com amigos”, afirma ao Expresso. É por isso que o pianista e professor de música, natural de Lisboa, prefere manter a utilização de vários gadgets — como o telemóvel, o MP3 ou a máquina fotográfica —, com as suas diferentes funções, do que utilizar tudo num único dispositivo. Acredita que esta é uma forma de estar mais presente em cada momento, escolhendo exatamente o que quer fazer, sem ser invadido por notificações. Para o músico, “a ideia de ter tudo no mesmo dispositivo, que é a grande vantagem que um smartphone oferece, faz alguma confusão, quer por questões de saúde mental quer até por questões de privacidade e gestão de informação”.
No entanto, a determinada altura, começou a sentir-se encurralado pela tecnologia, quando alguns alunos lhe pediram para pagar as aulas por MB Way. Numa fase inicial, a sua conta estava no telemóvel da mãe, mas rapidamente percebeu que os procedimentos mais simples — como efetuar um pagamento online (através do computador) — exigiam o acesso a uma aplicação para telemóvel. Foi aí que decidiu recuperar um smartphone antigo, colocar um cartão só de dados móveis, e facilitar estes processos, bem como aceder ao e-mail ou ao GPS. Mas tudo isso se mantém longe do seu dispositivo pessoal: “O meu telemóvel é um de teclas. O smartphone utilizo como se fosse um computador de bolso”, explica. Mantém muito clara a ideia de que o telemóvel inteligente não é utilizado como um telefone, tem até as notificações desligadas, e pode ser deixado em casa ou desligado em qualquer momento. Isso não lhe causa ansiedade porque, caso precise de ser contactado, terá sempre o seu dumbphone por perto.
Pela praticidade dos modelos ou por necessidade de impor uma pausa à tecnologia, a procura por telemóveis de teclas mostra que a simplicidade tem valor
Neste contexto, há uma pergunta que recebe repetidamente — “Não tens WhatsApp?!” A resposta é não. Este foi um dos aspetos em que se manteve firme. “Eu vejo as pessoas à minha volta que utilizam, têm mais de 30 grupos e de repente recebem mensagens de trabalho misturadas com outras de foro particular”, acrescenta. No smartphone também não acede às suas páginas de internet, Facebook e Instagram, cuja gestão é feita a partir do computador. Apesar desta disciplina, sente que esta ainda não é a solução perfeita: “Se eu pudesse ter ficado no telefone de teclas, acho que teria sido a melhor decisão de todas.” E a verdade é que, no dia a dia, já se tem cruzado com quem tenha optado por essa solução. Num olhar mais atento, já se deparou com jovens “na casa dos 18, 19 ou 20 anos” a utilizarem telemóveis de teclas, seja em transportes públicos ou até em ambientes mais sociais, durante a noite.
Tiago Sousa acredita que, em poucos anos, as pessoas vão dar-se conta de que os smartphones “lhes fazem mal, interferem socialmente a vários níveis, quer das relações pessoais como das coletivas, e vão perceber que pode haver um momento de utilização, mas também tem que haver um momento de não utilização”.
Neste momento, e depois de ter perdido o seu dumbphone mais recente, o músico está a experimentar um que era da sua avó. Já experimentou comprar modelos mais antigos, adquiridos numa feira de velharias, mas a bateria e o microfone não tinham a qualidade necessária. Quando olha para os telemóveis de teclas mais recentes, sente que “estão a ficar piores”, encontrando apenas opções com as teclas muito grandes e botões de emergência, a pensar em pessoas com idades mais avançadas.
Do velho se faz novo
Em casa de Bruno Damásio, em cima da mesa, há 12 telemóveis que representam uma viagem no tempo. Vemos um Alcatel com tampa deslizante e antena, o clássico Nokia 3310, o Nokia N-Gage (desenhado a pensar numa consola de jogos), o Nokia Xpress Music (que já permitia colocar um cartão de memória para ouvir músicas) ou mesmo um Sony Ericsson. Há modelos que permitiam fazer apenas chamadas, outros já deixavam enviar SMS e tinham até alguns jogos. Daí para a frente, a evolução foi no sentido de levar cor até aos ecrãs, câmaras fotográficas e alguns deram privilégio à possibilidade de armazenar música. O músico de 50 anos, natural de Leiria, não se considera um colecionador, mas guarda os telemóveis como um depósito de memórias, peças que marcam um tempo. Ainda se lembra de comprar o primeiro telemóvel, que recebeu com mais algum dinheiro na troca de um carro, mas hoje não prescinde do seu smartphone.
Tal como Bruno, muitos são os que, ao longo dos anos, foram guardando os modelos de dumbphones que lhes passaram pelas mãos. Por carinho pelo que representaram ou pela piada, a verdade é que todas as casas têm aquela caixa com modelos e carregadores antigos. Mas no mundo da segunda mão, há quem os procure e os modelos voam das prateleiras.
Na loja do Porto da Cash Converters, onde é possível vender e comprar artigos em segunda mão, são muitos os clientes que perguntam por telemóveis de teclas. Fábio Moreira, subgerente, já viu passar pelo espaço comercial vários modelos da Alcatel e da Nokia que, embora raros, rapidamente são vendidos. “Há muita gente de idade que vem procurar estes telemóveis pelas teclas, porque é mais fácil para eles, e depois têm um preço mais acessível, que é chamativo para pessoas com menos posses”, afirma. A loja compra estes modelos por preços que variam entre os 10 e os 20 euros, que são depois colocados à venda — após um processo de higienização e controlo de qualidade — por valores que começam nos 20 euros e podem chegar aos 39. A durabilidade da bateria, superior a qualquer smartphone, é outra das vantagens dos dumbphones. “É um artigo que rapidamente é vendido, nunca está mais do que duas semanas exposto em loja”, acrescenta o responsável de 32 anos.
Mais recentemente, Fábio Moreira conta que há também uma franja de clientes mais jovens à procura destes artigos. “Hoje em dia está muito na moda o vintage e esse cliente procura os telemóveis de teclas por isso e também pela durabilidade das baterias e por serem mais resistentes a quedas”, dá conta. E acrescenta: “Há modelos que os mais novos nunca viram e vêm à procura nesta lógica do vintage. Essa é uma área que tem crescido.”
Seja a praticidade dos modelos antigos ou a necessidade de impor uma pausa à tecnologia, a procura por telemóveis de teclas mostra que, apesar de toda a sofisticação dos smartphones, há algo a valorizar na simplicidade. Os dumbphones podem ser uma boa solução para escolhermos quando estamos conectados e quando simplesmente desligamos. Estes aparelhos provam que, às vezes, menos é mesmo mais e que regressar às teclas pode ser a chave para não nos tornarmos naquela famosa cobrinha que procura desesperadamente a próxima maçã dentro de um ecrã de telemóvel.

