“Eram, pois, anos de entusiasmo para os defensores do capitalismo, a sua festa maior.
Com a privatização dos sectores públicos (telefone, petrolíferas, linhas aéreas, águas…) conseguiu-se reduzir, como já dissemos, a inflação, da mesma forma que com a recuperação economia aumentaram as exportações e o investimento de capital estrangeiro. Foi a tendência para a recuperação económica que fez aumentar o número de trabalhadores activos. No entanto, de acordo com um relatório da OIT de 1994:
<<este comportamento positivo dos índices de ocupação não chegou para dar um posto de trabalho a todos os requerentes. Como resultado, no que vai da década presente, a desocupação regista níveis desconhecidos na história económica recente da Argentina.
(…) tal aumento do desemprego produz-se – este é um dado que singulariza a situação argentina – num contexto de altos índices de crescimento do PIB. Não se trata,então de um aumento da desocupação como consequência da recessão económica, mas de um fenómeno certamente atípico que revela a incapacidade da economia argentina criar emprego suficiente, ainda que em situações de forte crescimento do produto. >>
Nos quadros que acompanham o relatório regista-se que, entre 1983 e 1993, a taxa de actividade, quer dizer, a população activa, aumentou ano após ano. NO entanto, no índice de desemprego, também as cifras crescem ano após ano e a um ritmo mais elevado. O sub-emprego entre a população activa também cresceu 5,9% em 1983, para 8,3% em 1992, o que demonstra uma tendência para a precariedade. O poder de compra dos trabalhadores baixou mais de 30% entre 1984 e 1992, registando os níveis mais altos em 1989-90. De acordo com o economista Joseph Stiglitz, ex-vice-presidente do Banco Mundial, referindo-se à estratégia global das instituições económicas internacionais:
<<Enquanto os trabalhadores lutavam com todas as suas forças para conseguirem postos de trabalho dignos, no FMI lutavam para conseguir a flexibilidade do mercado de trabalho.
Para os funcionários do FMI o desemprego é um sintomas inequívoco duma intervenção no funcionamento natural do mercado. Os salários são demasiado altos. A solução evidente para o desemprego é cortar nos salários; com o corte salarial aumentaria a procura de mão de obra.>>
Durante a década de 90, e muito especialmente durante o Governo de Menem, os números do desemprego aumentara drasticamente. Em Dezembro de 2001, de acordo com os números oficiais, o nível de desemprego rondava os 20%. Durante 2001, 1.542 empresas entraram em suspensão de pagamentos ou faliram, o que correspondia a mais 10,5% do que em 2002 e a mais 55,4% do que em 1998.
Esta situação tinha sido provocada pela aplicação de políticas económicas neoliberais, que se tinham começado a implementar em finais dos anos 80 e durante a década de 90. Ao longo desta década produziu-se uma vaga de privatizações na maioria dos sectores públicos, o que provocou um grande número de despedimentos e uma degradação das condições laborais. Quando, no início da campanha, os peronistas diziam que era necessário abrir à concorrência, isso significava, basicamente, que as empresas públicas começariam a reduzir custos, ainda que isso deixasse sem trabalho milhares de pessoas. A privatização significa isto: transformar serviços em negócios.
(…)
Em boa parte, os cortes nos serviços públicos e a redução de investimentos nos sectores de serviços não são senão uma exigência dos organismos que controlam a economia a nível mundial.
O Banco Mundial concede créditos para o desenvolvimento dos países considerados periféricos, para que se possam criar e consolidar novos mercados. A concessão destes créditos, no entanto, está condicionada à aceitação prévia das políticas económicas que o FMI estabelece. O FMI, por seu lado, encarrega-se de tentar a estabilidade do sistema monetário internacional. É ele quem autoriza as desvalorizações de moeda e quem trata de manter estáveis os níveis de câmbios. Também concede créditos a países com desequilíbrios na balança de pagamentos e impõe as condições dos mesmos. O problema reside precisamente nas condições que se estabelecem. E estas têm a ver com cortes orçamentais em gastos públicos e serviços sociais, como a educação e a saúde.
(…)
Estas formas de actuar têm sérias consequências não apenas na economia, mas também+em na política de cada país. Quando o FMI impões certas condições, está a entrar nas competências próprias dum Estado. Ainda que, nas democracias parlamentares actuais, não exista um controlo rela e directo da vida política por parte da cidadania, menos democrático é ainda que organismos como o FMI, com uma série de directores não eleitos, ditem que comportamentos devem adoptar as instituições próprias de cada estado no que diz respeito à gestão dos seus assuntos internos. Tal imposição representa um retrocesso nas conquistas democráticas que tão duras lutas custaram aos países que, com mais frequência, têm de recorrer aos “serviços” do FMI ou do BM.
(…)
A questão não é somente se foram ou não políticas acertadas, ou se existiram uns políticos corruptos que olharam mais para os seus bolsos do que para os interesses da nação. A base do problema reside num modelo de organização social que deixa milhões de pessoas sujeitas às decisões de umas poucas. Essas poucas tendem a defender os seus próprios interesses, como o faria a maioria se tivesse o poder para o fazer. A questão é que uma minoria está em posição de tomar decisões enquanto o resto da humanidade se vê privada desta capacidade. é a consequência das estruturas hierárquicas e autoritárias que os modernos Estados democráticos adoptam, e que herdaram dos Estados totalitários, que por sua vez herdaram estruturas anteriormente igualmente opressoras. Nesse sentido, a história não mudou, a humanidade continua a organizar-se em estruturas de dominação onde poucos se impõem à maioria. A única coisa que mudou foi a forma de relacionamento entre estes grupos antagónicos, estas classes sociais. Na sociedade capitalista moderna esta minoria não possui fisicamente os subordinados, ainda que possua os meios de produção, distribuição e subsistência . Quando os trabalhadores se vêem expulsos destes meios perdem a sua única propriedade, a própria força de trabalho e, consequentemente, caem no poço de pobreza.
(…)
Aqui reside a condição sine qua non do capitalismo. Toda a riqueza gerada pelo conjunto dos trabalhadores, quer dizer , a maioria social, é propriedade dos capitalistas, que administram a seu gosto. O problema não está na falta de recursos, mas no seu acesso.
Estes acontecimentos não são fruto de más administrações ou de autoridades corrupta, mas sim da própria marcha do capitalismo. A má gestão limita-se a agravar isso, mas uma boa gestão não o impediria. Portanto, quando milhares de argentinos e argentinas são privados de alimentos ou de medicamentos e, no mercado, os preços não deixam de subir, não devemos procurar o problema na má fé dos comerciantes, mas na existência de um modelo social em que os interesses dum grupo são antagónicos e prejudiciais para os do outro.”
Em: Argentina: Crise e Revolta de Carlus Jové (edição de indymedia)